domingo, 25 de setembro de 2016

DEFINIÇÃO DO AMOR: POEMA DE GREGÓRIO DE MATOS





Mandai-me, Senhores, hoje, 
que em breves rasgos descreva 
do Amor a ilustre prosápia, 
e de Cupido as proezas.

Dizem que da clara escuma, 
dizem que do mar nascera, 
que pegam debaixo d'água 
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro 
seu pai, onde Vênus bela 
serviu de bigorna, em que 
malhava com grã destreza.

Que a dois assopros lhe fez 
o fole inchar de maneira, 
que nele o fogo acendia, 
nela aguava a ferramenta.

Nada disto é, nem se ignora, 
que o Amor é fogo, e bem era 
tivesse por berço as chamas 
se é raio nas aparências.

Este se chama Monarca, 
ou Semideus se nomeia, 
cujo céu são esperanças, 
cujo inferno são ausências.

Um Rei, que mares domina, 
Um Rei, o mundo sopeia, 
sem mais tesouro que um arco, 
sem mais arma que uma seta.

O arco talvez de pipa, 
a seta talvez de esteira, 
despido como um maroto, 
cego como uma toupeira.

Um maltrapilho, um ninguém, 
que anda hoje nestas eras 
com o cu à mostra, jogando 
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara, 
por deixar o outro alerta, 
por detrás à italiana, 
por diante à portuguesa.

Diz que é cego, porque canta, 
ou porque vende gazetas 
das vitórias, que alcançou 
na conquista das finezas.

Que vende também folhinhas 
cremos por coisa mui certa, 
pois nos dá os dias santos, 
sem dar ao cuidado tréguas;

E porque despido o pintam 
é tudo mentira certa, 
mas eu tomara ter junto 
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa 
e num pensamento chega 
assistir hoje em Cascais 
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro 
com duas porradas tesas: 
e é bem, que no Amor se gabe, 
o que o vinho só fizera!

E isto é Amor? é um corno. 
Isto é Cupido? má peça. 
Aconselho que o não comprem 
ainda que lhe achem venda.

Isto, que o Amor se chama, 
este, que vidas enterra, 
este, que alvedrios prostra, 
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira, 
este, que roubou a Helena, 
este, que queimou a Troia, 
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco, 
este, que o ouro despreza, 
faz liberal o avarento, 
é assunto dos poetas:

Faz o sisudo andar louco, 
faz pazes, ateia a guerra, 
o frade andar desterrado, 
endoidece a triste freira.

Largar a almofada a moça, 
ir mil vezes à janela, 
abrir portas de cem chaves, 
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados, 
trepar cheminés e gretas, 
chorar lágrimas de punhos, 
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes, 
perder a vida em pendências, 
este, que não faz parar 
oficial algum na tenda.

O moço com sua moça, 
o negro com sua negra, 
este, de quem finalmente 
dizem que é glória, e que é pena.

É glória, que martiriza, 
uma pena, que receia, 
é um fel com mil doçuras, 
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata, 
doce veneno, que enleia, 
uma discrição, sem siso, 
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre, 
uma liberdade presa, 
desvelo com mil descansos, 
descanso com mil desvelos.

Uma esperança, sem posse, 
uma posse, que não chega, 
desejo, que não se acaba, 
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropisia d'alma, 
da razão uma cegueira, 
uma febre da vontade, 
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura, 
uma chaga, que deleita, 
um frenesi dos sentidos, 
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina, 
faísca emboscada em pedra, 
um mal, que não tem remédio, 
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta, 
um perigo, que não deixa, 
um estrago, que se busca, 
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala, 
pena, que sempre atormenta, 
manjar, que não enfastia, 
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça, 
um engano, que contenta, 
um raio, que rompe a nuvem, 
que reconcentra a esfera.

Víbora, que a vida tira 
àquelas entranhas mesmas, 
que segurou o veneno, 
e que o mesmo ser lhe dera.

Um áspide entre boninas, 
entre bosques uma fera, 
entre chamas salamandra, 
pois das chamas se alimenta.

Um basalisco, que mata, 
lince, que tudo penetra, 
feiticeiro, que adivinha, 
marau, que tudo suspeita.

Enfim o Amor é um momo, 
uma invenção, uma teima, 
um melindre, uma carranca, 
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago, 
um arrufo, e uma guerra, 
hoje volta, amanhã torna, 
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças, 
de ciúmes vara e meia, 
um sim, que quer dizer não, 
não, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha, 
um folgar muito deveras, 
um embasbacar na vista, 
um ai, quando a mão se aperta.

Um falar por entre dentes, 
dormir a olhos alerta, 
que estes dizem mais dormindo, 
do que a língua diz discreta.

Uns temores de mal pago, 
uns receios de uma ofensa, 
um dizer choro contigo, 
choramingar nas ausências.

Mandar brinco de sangrias, 
passar cabelos por prenda, 
das palmitos pelos Ramos, 
e dar folar pela festa.

Anal pelo São João, 
alcachofras na fogueira, 
ele pedir-lhe ciúmes, 
ela sapatos e meias.

Leques, fitas e manguitos, 
rendas da moda francesa, 
sapatos de marroquim, 
guarda-pé de primavera.

Livre Deus, a quem encontra, 
ou lhe suceder ter freira; 
pede-vos por um recado 
sermão, cera e caramelas.

Arre lá com tal amor! 
isto é amor? é quimera, 
que faz de um homem prudente 
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira 
chamar-lhe-ei, mais depressa, 
fogo selvagem nas bolsas, 
e uma sarna das moedas.

Uma traça do descanso, 
do coração bertoeja, 
sarampo da liberdade, 
carruncho, rabuge e lepra.

É este, o que chupa, e tira, 
vida, saúde e fazenda, 
e se hemos falar verdade 
é hoje o Amor desta era.

Tudo uma bebedice, 
ou tudo uma borracheira, 
que se acaba co'o dormir, 
e co'o dormir começa.

O Amor é finalmente 
um embaraço de pernas, 
uma união de barrigas, 
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas, 
uma batalha de veias, 
um reboliço de ancas, 
quem diz outra coisa, é besta.

Nenhum comentário: