domingo, 16 de maio de 2021

O BANQUETE: poema de Cassiano Ricardo

 


     Em meu quarto, o silêncio,
e a lâmpada que me divide em dois.
O meu quarto é mais pobre que o de Jó;
duas vezes eu e uma lâmpada só.

     No salão do vizinho,
que não me convidou, a mesa alva;
e os convivas bebendo um vinho triste.
Será sangue de Orfeu? lácrima-crísti?

     Porém, se o vinho é triste,
há estrelas líquidas em copos altos,
que cintilam, qual geométricos lírios,
erguidos no ar à hora dos delírios.

     Sinto-me bem, assim,
não convidado, pois não bebo estrela
nem sangue; sou enteado da alegria.
A tristeza é o meu pão de cada dia.

     Seria eu, na festa,
um insulto aos demais, algo de cômico.
Uma pedra aos que têm, no ombro, uma asa.
Um carvão, quando tudo, ali, é brasa.

     Sinto-me bem, porque
sou um cacto com folhas de silêncio.
Não troco por nenhum gole de vinho
este meu ser noturno e submarinho.

     Que só me cheguem, pois,
o terrincar das taças, o confuso
gorjeio das bacantes. Só me agrada
beber - rosa num copo - a madrugada.

     Ah, se soubessem, todos,
o bem que me fizeram, excluindo-me
do banquete - o mais lógico dos olvidos -
ergueriam um brinde aos excluídos.

Do livro "Arranha-céu de vidro". In: Poesia completas
.


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Poema de Jorge de Lima



Parentesco :: Album

25

O avô tinha sido um ancião convencional,
que se aterrou de sobrecasaca e polainas;
e a avó – uma menina pálida que morreu ao pari-la;
e o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Daí – a mão dobra a página do livro,
e a história da tetraneta finda com uma estocada no ventre:
há destinos travados, lenços quentes de lágrimas,
algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo. –
Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue no soalho.
Esta é a mais nova das cinco.
Veja que os seios são como neve que nós nunca vimos
e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho;
e o filho desta menina é este moço de luto.
Agora vire a página e olhe o anjo que ele possuiu,
veja esta mantilha sobre este ombro puro,
e estes olhos que parecem contemplar as nuvens
através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo querer
as cortinas dão a impressão de caras impressionantes
por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque e outro de capa.
                                                                                           
Repare bem o braço que ninguém sabe de onde
circunda o busto da moça e a quer levar para um lugar esconso.
Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para perceber a respiração grossa,
os gritos, os juramentos . . . A saia negra parece um sino de luto,
e o decote é a nau que a levou para sempre. E este fundo de água
pode ser o mar muito bem; mas pode ser as lágrimas do fotógrafo.


Poema 25 do livro Anunciação e encontro de Mira-Celi
 

sábado, 1 de agosto de 2020

Poema de Bertolt Brecht: "Soube que vocês nada querem aprender"



Soube que vocês nada querem aprender
Então devo concluir que são milionários.
Seu futuro está garantido – à sua frente
Iluminado. Seus pais
Cuidaram para que seus pés
Não topassem com nenhuma pedra. Neste caso
Você nada precisa aprender. Assim como está
Pode ficar.


Havendo dificuldades, pois os tempos
Como ouvi dizer, são incertos
Você tem seus líderes, que lhe dizem exatamente
O que tem a fazer, para que vocês estejam bem.
Eles leram aqueles que sabem
As verdades válidas para todos os tempos
E as receitas que sempre funcionam.
Onde há tantos a seu favor
Você não precisa levantar um dedo.
Sem dúvida, porém, se fosse diferente
Você teria o que aprender.


Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. 

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Fotografia de Jefferson Bessa

Fotografia de Jefferson Bessa 

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

COMIGO ME DESAVIM: SÁ DE MIRANDA

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Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crescesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.

¿Que meo espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo de mim?

POETAS DO SÉCULO DE OURO ESPANHOL:  Seleção e tradução de Anderson Braga Horta; Fernando Mendes Vianna e José Jeronymo Rivera