sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Poema de Jorge de Lima



Parentesco :: Album

25

O avô tinha sido um ancião convencional,
que se aterrou de sobrecasaca e polainas;
e a avó – uma menina pálida que morreu ao pari-la;
e o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Daí – a mão dobra a página do livro,
e a história da tetraneta finda com uma estocada no ventre:
há destinos travados, lenços quentes de lágrimas,
algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo. –
Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue no soalho.
Esta é a mais nova das cinco.
Veja que os seios são como neve que nós nunca vimos
e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho;
e o filho desta menina é este moço de luto.
Agora vire a página e olhe o anjo que ele possuiu,
veja esta mantilha sobre este ombro puro,
e estes olhos que parecem contemplar as nuvens
através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo querer
as cortinas dão a impressão de caras impressionantes
por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque e outro de capa.
                                                                                           
Repare bem o braço que ninguém sabe de onde
circunda o busto da moça e a quer levar para um lugar esconso.
Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para perceber a respiração grossa,
os gritos, os juramentos . . . A saia negra parece um sino de luto,
e o decote é a nau que a levou para sempre. E este fundo de água
pode ser o mar muito bem; mas pode ser as lágrimas do fotógrafo.


Poema 25 do livro Anunciação e encontro de Mira-Celi
 

2 comentários:

Teté M. Jorge disse...

Que interessante a fotografia que esse poema emite a despeito da imagem apresentada...
Um beijo

Jefferson Bessa disse...

Teca, também gosto muito, ele é preciso, conduz o nosso olhar. É tão interessante e expressivo que a imagem do poema consegue emitir a triste história de violência e hipocrisia da família (da tradicional família brasileira?).
Um beijo