O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente? minha experiência vem de que eu já consegui pintar o halo das coisas. O halo é mais importante que as coisas e as palavras. O halo é vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: é uma palavra como fino bloco monolítico que projeta sombra. E é trombeta que anuncia. O halo é o it.
Do livro Água Viva.
É um trecho do livro Água Viva. O livro do início (que não tem) ao fim (que não tem) é essa continuidade da escrita.
Mas o livro não começa, não há fim?
Não, não há nem começo nem fim.
Assim, Clarice "continua" a última frase (que não será a última) do livro com uma frase que dará continuidade eterna ao livro: "O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua. (...) O que te escrevo continua e estou enfeitiçada".
Estar "enfeitiçada" é deixar a corrente da vida ser esse fluxo interminável da escrita. O que transcende as frases é sentir a continuidade desse movimento circular e luminoso de um "isto" que não para nunca - o halo das coisas. É uma correnteza viva que não se denomina, mas que flui em instantes vertiginosos pela linha circular que envolve a escrita indecifrável. O halo que se capta é o "it": algo que se eleva da escritura - algo que exala da palavra - o que não se conhece por inteiro. É "isto" que está sobre, que transcende, que está ao redor das coisas. Mas não é o pensamento do sobrevoo da ciência que, segundo Merleau-Ponty, pretende alcançar o objeto de maneira geral, de modo que, como algo prévio, se descubra todos os lados do objeto. Diferentemente, esse halo de Clarice está acima como o que não se pode conhecer por completo, porque o mais valioso está suspenso - ao redor das coisas. Junto ao '"isto" está a continuação perene da escrita que não esclarece ao que se refere. A pintura doa tal experiência - ela diz. A escrita exala sua luminosidade, pois tem ao seu redor esse halo, esse isto - pronome demonstrativo que somente nos indica, nos aponta, mas não nos diz por completo o que a coisa é. (Jefferson Bessa)
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